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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Para quem a vida é fácil

O que esperar de um filme que fez estardalhaço ao ser lançado, que foi dirigido por um diretor conhecido, que tem um elenco global e que, ainda por cima, trata de dois temas dos mais espinhosos no nossa modernidade que são o incesto e a homossexualidade? Conflito, muito conflito. Entretanto, contrariando todas as expectativas, nada disso encontra o espectador de Do começo ao fim, filme brasileiro de 2009 que eu só vi semana passada,  numa sessão especial aqui em Rio Preto.


O enredo é facilmente divido em duas partes: uma antes e outra depois da morte da mãe dos irmãos protagonistas. A mãe, Júlia Lemmertz, é talvez a melhor personagem de todo o filme porque é a única a sofrer, a se questionar e a investigar com seu olhar a convivência de seus dois filhos, antevendo o futuro relacionamento amoroso entre eles. Ela começa a estranhar as carícias e as brincadeira dos irmãos, e nesse estranhamento reside o ponto alto do filme, que é a atuação silenciosa da mãe perante uma situação que é das mais perturbadoras para nossa cultura. Enquanto as filhos pequenos se beijam na bochecha e brincam de médico, vemos a mãe chorar olhando pela janela e ouvir conselhos do ex-marido, e em nenhum momento a questão do incesto é escancarada. Ela não comenta nem briga com ninguém, mas sua imagem deteriora-se, fumando cigarro e sentada à mesa no jardim da casa em que mora. Só uma vez tem-se um diálogo que vale a pena no filme, dela com o filho mais velho, que começa com a velha e enigmática frase "não tem nada que você queira me contar?" e que termina tao inconclusivo como começou. Ficamos sem saber o motivo de se sofrimento, não sabemos sequer se era por causa da homossexulidade, do incesto ou dos dois.

A partir desse momento, o filme degringola. Afastam-se todas as fontes de conflito que poderiam preocupar os protagonistas: anos depois, a mãe morre, assim como o pai do mais velho e o pai do mais novo muda-se de casa. Os irmãos já estão mais velhos, envolvidos amorosa e fogosamente, e vivem num mundo aparte, num idílio impensável para um casal incestuoso. São felizes, ricos, bonitos e jovens, não tem muito contato com o resto do mundo nem passam por nenhum questionamento sobre sua condição. Dessa forma, Do começo ao fim criou dois personagens estranhíssimos: são homossexuais mas não passaram por nenhum momento de repressão; têm um relacionamento incestuoso mas não entram em conflito com o mundo à sua volta. A grande questão proposta para o futuro do relacionamento dos dois é a viagem do mais novo à Rússia para treinar natação. A distância provoca crises de ciúmes e saudades, sanadas com um chorinho e juras de amor eterno; e o filme termina com a visita do mais velho ao irmão em Moscou, com um abraço e um beijo digno da novela das oito.

Se é verdade que de tudo fica um pouco, como diria Drummond, de Do começo ao fim fica muito pouco. Talvez só a constatação universal, nossa velha conhecida, de que a mãe sempre sabe...

4 comentários:

  1. Sinto como se houvesse ficado a minha espreita e tenha ouvido todas as minhas impressões sobre o filme... ou seja, faço minhas as suas palavras. Parabéns, seu blog é formidável... creio que sua mente ainda mais. Nestas horas, eu deveria ter ouvido o provérbio chinês e ouvir mais, a falar tanto... Creio que a noite se arrasta, eu teria que estudar pra prova de amanhã, ou até mesmo descansar de uma longa viagem, mas creio que ainda há mais alguns textos nas próximas páginas..

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  2. Confesso que esse filme me deixou confuso: não sei se gosto dele ou não. Acho que gosto pela ousadia do tema, pelos autores, por este relato que vocês sobre a mãe. No entanto, achei que forçaram muito nas cenas mais quentes entre os irmãos. Acho que estamos num momento delicado: não se deve negar a homossexualidade, mas acho que é preciso ter dedos ao lidar com ela ainda mais em mídias de massa - acho que podemos considerar o cinema assim.
    E mais uma vez, foi impecável no texto.

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    1. Renato, concordo sobre a ousadia, sobre a questão da mãe e sobre os atores. Discordo quando você diz que precisamos de tato ao lidar com homossexualidade em mídias de massa. Acho, pelo contrário, que mostrar a realidade como ela é, com seus comedimentos mas também com exageros é o caminho certo para o bom entendimento entre os diversos pontos de vista de que se compõe a sociedade.

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